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sábado, 30 de outubro de 2010

Lançamento do Livro "Sociologia e Administração: relações sociais nas organizações", pela Editora Elsevier



Este livro foi pensado para suprir as necessidades de um curso completo de Sociologia aplicada à Administração, percorrendo um amplo espectro de temas clássicos e contemporâneos. Com o intuito de oferecer a professores e alunos uma obra que contemplasse conteúdos que consideramos essenciais ao tratamento do tema, convidamos professores de outras instituições a colaborarem com este livro, apresentando, assim, um rico e diversificado conjunto de visões, nem sempre convergentes, mas por isso mesmo, valioso.

No capítulo “Marx, Weber e Durkheim: Quadro comparativo sobre o pensamento dos autores clássicos da sociologia”, Daniel Gustavo Mocelin e Lucas Rodrigues Azambuja, elaboraram um quadro que apresenta de forma geral e sumária as abordagens dos autores clássicos da sociologia, propondo facilitar de forma didática a “comparação” entre os autores. No texto também definimos o conceito de dialética do pensamento, que pode ser aplicado a qualquer autor. Como trata-se de uma quadro síntese, cabe ao leitor, segundo o seu interesse pessoal, buscar as especificidades referentes aos autores e às temáticas mencionadas, a partir de leitura dos textos originais ou interpretações, bem como cabe ao leitor articular as dimensões do quadro (expressa nas linhas), e construir uma reflexão combinada com as colunas, compreendendo as questões de maneira integrada. Longe de ser “reducionista”, o quadro propõe ser um guia temático e prático, expondo as abordagens de forma introdutória, portanto, sintética. O quadro pode ser lido tanto no sentido vertical, quanto no sentido horizontal, bem como focalizando os tópicos específicos. Os elementos presentes nas linhas e colunas podem ser lidos independentemente, mas também em conjunto, pois se implicam reciprocamente. Muitas explicações sobre uma dimensão poderá estar em outra. A primeira linha do quadro apresenta o contexto histórico comum aos três autores, destacando eventos e processos simultâneos que caracterizaram o ambiente de influência e o objeto de interpretação dos três clássicos. A partir da segunda linha definimos o contexto mais restrito a cada um dos autores, delimitando as condições históricas mais singulares de importante influência no pensamento de cada um dos autores; a influência intelectual, filosófica e teórico-metodológica; o foco de análise e objetos de investigação; a concepção de ciência e a de conhecimento social; a relação entre sociedade e indivíduo; a visão da história; as idéias importantes, dando destaque aos principais postulados teóricos; a noção de mercado; a metodologia, destacando, respectivamente a denominação do método e os procedimentos metodológicos sugeridos pelos autores para a apreensão da realidade social; a ideia da divisão do trabalho social; as inclinações políticas; e as principais obras dos autores, referindo o ano de sua produção.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

HABERMAS: Desenvolvimento da Moral e Identidade do Eu

Na obra Para a reconstrução do materialismo histórico, Habermas esboça a tese de que seria possível estabelecer uma homologia entre o desenvolvimento individual e a evolução social para superar o paradigma dos modos de produção e revitalizar a teoria crítica. Habermas baseia-se numa lógica segundo a qual ocorrem mutações nas estruturas normativas (valores, idéias morais, normas), que dependem tanto dos processos histórico-culturais quanto dos processos de aprendizagem. Os processos de aprendizagem seriam respostas aos desafios impostos por processos histórico-culturais, produzindo formas de interação cada vez mais maduras. A teorização habermasiana, em oposição ao pessimismo de Weber (expansão da racionalidade instrumental) e Adorno (fim do sujeito), aborda tanto a evolução do saber técnico-organizativo, que ocorre no sistema, quanto a evolução do saber prático-moral, que ocorreria no mundo-da-vida.

Diferentes níveis de aprendizado, relacionados aos níveis de organização moral e política, não correspondem às novas formas de organização da produção material, e, sim ‘a graus de desenvolvimento da consciência moral que correspondem aos níveis de competência interativa’.

Enquanto Marx localizou os processos de aprendizagem evolutivamente relevantes na dimensão do pensamento objetivante, do saber técnico e organizado, do agir instrumental e estratégico – em suma, das forças produtivas –, emergiram nesse meio tempo boas razões para justificar a hipótese de que, também na divisão da convicção moral, do saber prático, do agir comunicativo e da regulamentação consensual dos conflitos de ação, têm lugar processos de aprendizagem que se traduzem em formas cada vez mais maduras de integração social, em novas relações de produção, que são as únicas a tornar possível, por sua vez, o emprego de novas forças produtivas. (p. 21)

A sugestão do autor é a de deslocar da produção (que está no nível material) para a interação (que está no nível ideal) – lingüisticamente mediada – a motivação humana para a busca da convivência social e da evolução da espécie. Habermas estabelece entre os processos de aprendizagem individual e social uma circularidade: os indivíduos só podem desenvolver competência interativa e lingüística dominando as estruturas de racionalidade que já se encontram presentes em seus grupos primários/secundários, assimilando as idéias morais e as estruturas de justiça e verdade; as sociedades, por sua vez, só podem ser modificadas através do aprendizado construtivo dos indivíduos socializados. Para Habermas, o processo evolutivo da sociedade não se apóia, como indicava Marx, na contradição dialética entre forças produtivas materiais e relações de produção. As forças produtivas desenvolvem-se e as formas de integração social amadurecem de acordo com o desenvolvimento dos sujeitos tanto no nível do saber e do agir técnico-estratégico (razão instrumental e estratégica) como no do saber e do agir prático, moral e comunicativo (razão comunicativa). Nessa abordagem, o processo evolutivo da sociedade dependeria do desenvolvimento das capacidades e competências dos indivíduos que a ela pertencem. Habermas sugere, portanto, uma análise reconstrutiva da lógica do desenvolvimento da sociedade para superar a filosofia da história marxiana: “abandona” o “paradigma da filosofia da consciência”, baseado na práxis produtiva e na classe social, que buscava potenciais de emancipação na esfera da produção, substituindo-o (ou complementando-o) pelo “paradigma da comunicação”, baseado no entendimento intersubjetivo, entre sujeitos capazes de falar e agir, buscando potenciais de emancipação na esfera da interação.

No capítulo Desenvolvimento da moral e identidade do Eu, o autor vai enfatizar o desenvolvimento individual numa perspectiva sociológica, ou seja, se distanciando do desenvolvimento natural do Eu e embarcando no desenvolvimento sócio-moral do Eu. “Os conceitos-base psicológicos e sociológicos podem se articular porque as perspectivas do Eu autônomo e da sociedade emancipada neles esboçadas se corrigem e se implicam reciprocamente” (p. 50-51). Para elaborar seu argumento neste sentido, parte de três tradições teóricas que buscaram compreender a formação do Eu: a psicologia analítica do Eu (Sullivan, Erickson), a psicologia cognoscitiva do conhecimento (Piaget, Kholberg) e o interacionismo simbólico (Mead, Blumer, Gofmann). Os elementos comuns sobre o desenvolvimento individual nestas tradições seriam:

Primeiro, a capacidade lingüística e de ação do sujeito adulto é o resultado de processos de amadurecimento e aprendizagem; Segundo, o processo de formação de sujeitos capazes de linguagem e de ação percorre uma série irreversível de estágios de desenvolvimento discretos e cada vez mais complexos – nenhum estágio pode ser saltado e cada estágio superior implica o precedente; Terceiro, o processo de formação se dá de forma descontínua e é marcado por crises. Ter experimentado a solução produtiva de uma crise é condição necessária para dominar crises subseqüentes; Quarto, o Eu adquire crescente “autonomia” (independência) nas relações com a realidade, com a estrutura simbólica não objetivada de uma sociedade parcialmente interiorizada e com a natureza interna dos carecimentos culturalmente interpretados; Quinto, a identidade do Eu indica a competência do sujeito capaz de linguagem e de ação para enfrentar exigências. A identidade é gerada pela socialização, ou seja, se processa a medida em que o sujeito – apropriando-se dos universos simbólicos – integra-se num sistema social, enquanto que, mais tarde, ela é garantida e desenvolvida pela individualização, ou seja, precisamente por uma crescente independência com relação aos sistemas sociais; Por último, um mecanismo relevante de aprendizagem é a transformação de estruturas externas em internas.

A organização autônoma do Eu não se instaura de forma regular, como um processo natural. O processo de construção do Eu se caracteriza pela descentração progressiva do próprio Eu e pela sua delimitação em face da objetividade da natureza externa e do mundo social. Em sua tese sobre o desenvolvimento individual, Habermas enfatiza o aspecto cognoscitivo da consciência moral, ou seja, a capacidade reflexiva e de juízo moral dos indivíduos. No desenvolvimento moral decorrem processos de aprendizagem que são possíveis devido ao amadurecimento de estruturas cognitivas, construídas na interação do sujeito com o meio, as quais são fortemente ligadas a processos motivacionais e afetivos, que estão na base das inter-relações pessoais. As experiências do indivíduo (vivência) no decorrer da sua vida, em interação com a realidade sócio-cultural, bem como as motivações e emoções, que também são parte integrante de suas experiências, são elementos determinantes na formação de estruturas cognitivas e combinações que as estruturas cognitivas possibilitam, que impulsionam ou retêm a passagem para um plano superior do desenvolvimento moral. O desenvolvimento do Eu ocorreria em quatro estágios: simbiótico (não há distinção entre o si e o mundo, quando desenvolve a reflexividade), egocêntrico (distinção entre o si e o mundo, quando desenvolve a abstração), sociocêtrico-objetivista (assumir o papel do outro, quando desenvolve a diferenciação), e universalista (participação em discursos teóricos e práticos, quando desenvolve a generalização).

O autor se baseará nos níveis de desenvolvimento moral formulados por Kholberg. Cada nível compõe-se de dois estágios, sendo o segundo estágio alcançado através de um processo de reflexão sobre o primeiro. Cada novo estágio pressupõe uma reorganização das estruturas presentes nos estágios inferiores, o que significa a transformação na percepção e no julgamento de ações e a aquisição de novas formas de resolver conflitos morais.

I Nível: pré-convencional: A criança é capaz de responder a regras culturais e as noções de bom e mau, justo e errado, mas interpretando tais noções nos termos das conseqüências físicas ou hedonísticas da ação. Estágio 1: Orientação por punição e obediência. As conseqüências físicas da ação determinam se ela é boa ou má, independente da opinião ou do valor humano de tais conseqüências. Estágio 2: Orientação instrumental-relativista. A ação justa consiste no que satisfaz instrumentalmente os próprios carecimentos e, ocasionalmente, os carecimentos dos outros. Segundo Habermas, neste nível as orientações são generalizadas pelo prazer/desprazer. Os atores não estão ainda inseridos no universo simbólico. Em relação à percepção dos componentes cognoscitivos das qualificações de papel, o ator deve entender e satisfazer expectativas singulares de comportamento por parte de um outro. Quanto à percepção das componentes motivacionais das qualificações gerais de papel o ator não distingue entre causalidade natural e causalidade segundo a liberdade. Outra dimensão é a percepção de uma componente das qualificações gerais de papel; neste nível, o ator percebe os atores e ações independentes do contexto.

II Nível: convencional: O fato de satisfazer as expectativas da família, do grupo ou da nação a que o indivíduo pertence é percebido como algo avaliável pelo seu direito intrínseco, prescindindo-se das conseqüências óbvias e imediatas. É uma aptidão não só de conformar-se as expectativas pessoais e a ordem social, mas de lealdade face a ela. Estágio 3: A concordância interpessoal ou a orientação “bom moço – moça bem comportada”. Um bom comportamento é o que agrada ou ajuda os outros e é por eles esperado e aprovado. Estágio 4: Orientação “lei e ordem”. Há uma orientação no sentido de autoridade dos papéis fixos e da manutenção da ordem social. O comportamento justo consiste em cumprir o próprio dever, em mostrar respeito pela própria autoridade e em manter a ordem social dada em nome dessa mesma ordem. Segundo Habermas, neste nível, a identidade é liberada da ligação com a manifestação corpórea dos atores. Na medida em que a criança incorpora as universalidades simbólicas de poucos papéis fundamentais de seu ambiente natural e, posteriormente, as normas de ação de grupos mais amplos; superpõe-se à identidade natural a identidade de papel sustentada por símbolos. Quanto à percepção dos componentes cognoscitivos das qualificações de papel, o ator deve ser capaz de entender e satisfazer expectativas singulares de comportamento reflexivo, ou deve ser capaz de desviar-se delas. Outra dimensão é a percepção de uma componente das qualificações gerais de papel, na qual o ator distingue entre as ações singulares e as normas, e entre os atores e portadores de papéis.

III Nível: pós convencional: Há um claro esforço no sentido de definir os valores e os princípios morais que tem validade e aplicação independentemente da autoridade dos grupos ou das pessoas que os sustentam e do fato de que o próprio indivíduo se identifique com tais grupos. Quanto à percepção das componentes motivacionais das qualificações gerais de papel, o ator deve saber distinguir entre ações obrigatórias e ações puramente desejadas. Estágio 5: A orientação legalista social-contratual. Geralmente com acentuações utilitárias. A justiça tende a ser definida em termos de direitos individuais. Há uma clara consciência no relativismo de valores e das opiniões pessoais e uma correspondente acentuação das regras de procedimento capazes de obter o consenso. Estágio 6: A orientação no sentido de princípios éticos universais. O que é justo é definido pela decisão tomada pela consciência, de acordo com princípios éticos autonomamente escolhidos, os quais apelam a compreensividade lógica, a universalidade e a consistência. Neste nível, os portadores de papéis se transformam em pessoas, que podem afirmar a própria identidade independentemente dos papéis concretos e de sistemas particulares de normas. O jovem já é capaz de distinguir entre as normas e os princípios segundo os quais é possível produzir normas, adquirindo a capacidade de julgar segundo princípios. A identidade do papel é substituída pela identidade do Eu. Quanto à percepção dos componentes cognoscitivos das qualificações de papel, o ator deve poder compreender e aplicar normas reflexivas. Quanto à percepção das componentes motivacionais das qualificações gerais de papel o ator deve distinguir entre heteronomia e autonomia, ou seja, perceber a diferença entre normas herdadas e normas justificadas por princípios. Neste nível as normas particulares devem ser tematizadas sob o angulo da sua capacidade de ser generalizadas, de modo que se torne possível distinguir entre normas particulares e gerais. Os atores são compreendidos como sujeitos individualizados que organizam biografias respectivamente inconfundíveis.

Transição entre os estágios, ruptura com o estágio anterior: No nível I só podem se tornar moralmente relevantes ações concretas e conseqüências de ações. Quando ocorre a reciprocidade incompleta atinge-se o estágio 1, na reciprocidade completa, o estágio 2. No nível II, quando se exige reciprocidade incompleta para expectativas de comportamento, atinge-se o estágio 3, a mesma exigência em face de sistemas de normas conduz ao estágio 4. Quando os carecimentos relevantes para a ação podem se manter fora do universo simbólico, as normas de ação lícitas e universalistas têm então o caráter de regras para a maximização do útil e de normas jurídicas universais temos o estágio 5. Quando os carecimentos são entendidos em sua interpretação cultural, mas atribuídos aos indivíduos como qualidades naturais, ocorre o estágio 6.

Ao assumir que a sucessão dos estágios da consciência moral representa teoricamente uma conexão estruturada pela lógica do desenvolvimento, Habermas menciona, primeiro, as estruturas do agir comunicativo que, introduzidas de acordo com o aprendizado da criança, servem de elemento indispensável para que se percebam os conflitos morais; em segundo lugar, trata da aquisição das competências cognitivas que possibilitam a realização de interações as quais, inicialmente incompletas, possam completar-se no processo de desenvolvimento; e por fim, assinala as condições comunicacionais que viabilizam a passagem do agir comunicativo para o estágio do discurso. Habermas identifica ainda um sétimo estágio, quando o princípio que justifica as normas não é mais o princípio monologicamente aplicável da capacidade de generalização das mesmas, mas o procedimento comunitariamente seguido para emprestar realização discursiva às pretensões de validade normativa.

O desenvolvimento do Eu é marcado por uma crescente autonomia em termos da independência com que o Eu resolve problemas. “Na identidade do Eu se expressa a relação paradoxal pela qual o Eu, como pessoa em geral, é igual a todas as outras pessoas, ao passo que – enquanto indivíduo – é diverso de todos os demais indivíduos” (p. 69). Para Habermas a identidade do Eu se efetiva na relação dialética do sujeito com o outro, ou seja, na intersubjetividade. “A identidade do Eu significa uma liberdade que (...) põe limites a si mesma” (p. 72). A noção de subjetividade ocorre no social: o homem só adquire consciência de si mesmo através do outro, ao desenvolver uma interação reflexiva através da linguagem, e em relação com e na construção de um mundo objetivo. Para Habermas, o Eu autônomo e competente refere-se ao sujeito que atingiu cognitivamente, o estágio pensamento hipotético-dedutivo (Piaget); lingüisticamente, o estágio da fala argumentativa; moralmente, o estágio pós-convencional (Köhlberg); e interativamente, a habilidade de assumir a perspectiva dos outros, examinando sua própria ação e interação à luz da reciprocidade de direitos e deveres (Mead).

Ao enfatizar o potencial emancipatório no mundo-da-vida, onde se dão os processos de interação, Habermas aponta para a formação do sujeito como um processo de aquisição crescente da competência interativa. A competência interativa é a capacidade dos indivíduos em resolver certas classes de problemas realmente relevantes, sejam esses de ordem empírico-analítica ou prático-moral: consistiria na capacidade de participar em sistemas de ação cada vez mais complexos, onde poderiam questionar as “pretensões de validade” embutidas na estrutura normativa e, através da argumentação, buscar o entendimento sobre a validade das normas. Os sujeitos dotados de competência interativa têm o compromisso de assumir, para dirimir eventuais conflitos, um ponto de vista capaz de efetivar consenso, “porém somente poderão se encontrar unidos em torno desse ponto de vista fundamental, se tal ponto de vista resultar das estruturas de interação possíveis”.

Os sujeitos dotados de competência interativa (tanto cognitiva, como lingüística, moral e motivacional) seriam capazes de reconstruir o universo simbólico através da busca argumentativa e processual da verdade; de questionar o sistema de normas que vigora na sociedade; de buscar novos princípios normativos para a ação individual e coletiva à base do melhor argumento e, conseqüentemente, de reorganizar sua sociedade em outras bases fundadas na interação que ocorre no mundo-da-vida. Essa lógica tomaria maior potencialidade no seio de um processo crescente de complexificação e de diferenciação funcional da ordem social (até o capitalismo tardio) uma vez que esse processo engendraria também uma progressiva capacidade de aprendizado e desenvolvimento da consciência moral. Frente a um mundo externo cada vez mais complexo e diferenciado, a competência interativa seria intensificada, segundo padrões cada vez mais diversos da realidade objetiva e gerando na interação abstrações cada vez mais abrangentes.

Comentários com base no texto:
HABERMAS, Jürgen. Para a reconstrução do materialismo histórico. Desenvolvimento da moral e identidade do eu (Texto original de 1974-6). São Paulo: Editora Brasiliense, 1990. (pp. 49-73).

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Lévi-Strauss: Eficácia simbólica, interação social e xamanismo

Xamã é uma figura social que significa alguém que sabe, um sábio. O xamanismo é uma expressão concreta daquilo que Lévi-Strauss define como eficácia simbólica, que implica processos de interação social.

“...As raízes do xamanismo são arcaicas, e alguns antropólogos chegam a pensar que elas recuam até quase tão longe quanto a própria consciência humana.As origens do xamanismo datam de 40.000 a 50.000 anos, na Idade da Pedra. Antropólogos têm estudado xamanismo nas Américas; do Norte, Central, Sul. Na África, entre os povos aborígines da Austrália, entre os Esquimós, na Indonésia, Malásia, Senegal, Patagonia, Sibéria, Bali, Velha Inglaterra e ao redor da Europa, no Tibet onde o xamanismo Bon segue a linha do Budismo Tibetano, em todos os lugares ao redor do mundo. Seus traços estão presentes nas Grandes religiões”. (Leo Artese)



No artigo “o feiticeiro e sua magia”, Lévi-Strauss apresenta relatos etnográficos onde procura mostrar os mecanismos psico-fisiológicos embutidos dentro do processo de construção daquilo que chama eficácia simbólica. Durante o artigo, Strauss vai nos remeter a relatos onde procura apresentar sua concepção a partir do método estrutural. A idéia é de que o feiticeiro não seria “tanto” (quanto ele parece a primeira vista) porque ele apenas realiza a cura. Na própria concepção de feiticeiro do grupo está embricada a idéia de poder que causa alguma coisa. Seria um tipo de “carisma” transportado do grupo para um indivíduo, embasado totalmente sobre seu inter-relacionamento. Lévi-Strauss inicia sua argumentação para a compreensão do processo da eficácia simbólica a partir de um artigo de W.B. CANNON, “Voodoo Death”, de 1942, onde relata que

“um indivíduo, consciente de ser objeto de um malefício, é intimamente persuadido, pelas mais solenes tradições de seu grupo, de que está condenado; parentes e amigos participam desta certeza. Desde então a comunidade se retrai: afasta-se do maldito, conduz-se a seu respeito não só como se fosse, não apenas já morto, mas fonte de perigo para seu grupo. (...) o enfeitiçado cede à ação combinada de intenso terror que experimenta, da retirada súbita total dos múltiplos sistemas de referência fornecidos pela convivência do grupo. (...) A integridade física não resiste à dissolução da personalidade social".



A psicologia do feiticeiro é um processo complexo que liga três elementos básicos: o xamã, o doente e o público. São três elementos indissociáveis que envolvem esse complexo xamanístico. Mas vê-se que eles se organizam em torno de dois pólos, formados, um pela experiência íntima do xamã, o outro pelo consensus coletivo. Não existe razão para duvidar, efetivamente, que os feiticeiros, ou ao menos os mais sinceros dentre eles, acreditam em sua missão. O xamã não é completamente desprovido de conhecimentos positivos e técnicas experimentais. É provável que os médicos primitivos, do mesmo modo que seus colegas civilizados, curem pelo menos uma parte dos casos de que cuidam, e que, sem esta eficácia relativa, os usos mágicos não poderiam conhecer a vasta difusão que os caracteriza. Acreditamos nos médicos de hoje por causa de seu mana, sua reputação. É um caso semelhante ao do xamã. Ele só cura porque é tido como um grande feiticeiro. Quesalid não se tornou um grande feiticeiro porque curava seus doentes, ele curava seus doentes porque tinha se tornado um grande feiticeiro. Este é o polo coletivo do sistema. Os rivais de Quesalid derrocaram, tornando-se motivo de chacota por sua vergonha, sentimento social por excelência. Isto é o desaparecimento do consensus social. Para STRAUSS

“o problema fundamental é, pois, o da relação entre um indivíduo e o grupo, ou; mais exatamente, entre um certo tipo de indivíduo e certas exigências do grupo.”

Nessa perspectiva, percebemos que as interpretações divergentes não são evocadas pela consciência individual, mas antes como fatores complementares de uma consciência coletiva. Para Lévi-Strauss, o par feiticeiro-doente encarna concretamente para o grupo um antagonismo próprio a todo o pensamento. O paciente aparece como passivo, alienado; o feiticeiro é atividade, extravasamento de si mesmo. A relação entre estes dois pólos opostos vai ser a cura, assegurando a passagem de um a outro, manifestando, numa experiência total, a coerência do universo psíquico, este projeção do universo social. A magia do processo readapta ao grupo problemas pré-definidos por intermédio do doente. O valor do sistema não se funda em curas reais que beneficiam indivíduos particulares; mas no sentimento de segurança trazido ao grupo pelo mito que fundamenta a cura, reconstituindo todo o seu universo dentro do sistema popular. É a assimilação de experiências informes e afetivas incorporadas na cultura do grupo que produzem o único meio de objetivar os estados subjetivos e formular impressões informuláveis, integrando experiências inarticuladas em sistema. A doença era uma desorganização cosmológica que afligia o grupo, e o xamã, cumprindo seu papel, reorganiza o grupo através da cura do paciente.

Reflexão com base no texto:
LÉVI-STRAUSS, Claude. O Feiticeiro e sua Magia. In: Antropologia Estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Lançamento do Livro "Sociologia e Administração: relações sociais nas organizações", pela Editora Elsevier



No referido livro apresentamos um capítulo que sintetiza e compara aspectos do pensamento dos autores clássicos da sociologia.

MOCELIN, Daniel Gustavo, AZAMBUJA, Lucas Rodrigues. Marx, Weber e Durkheim: Quadro comparativo sobre os autores clássicos da Sociologia. IN: PICCININI, Valmíria Carolina, ALMEIDA, Marilis Lemos de, OLIVEIRA, Sidinei Rocha de. Sociologia e Administração: Relações sociais nas organizações. 1ª ed. São Paulo: Campus/Elsevier, 2010. p. 32-42. (em impressão, lançamento em novembro de 2010)

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Direto ao ponto 4: Concorrência como elemento do movimento dialético na obra de K. Marx?



"A concorrência se torna sempre mais destrutiva para as relações burguesas, na medida em que ela excita uma criação febril de novas forças produtivas, isto é, de condições materiais de uma sociedade nova. Sob essa relação, ao menos, o lado mau da concorrência teria algo de bom".

Karl Marx, em A miséria da filosofia (1847)

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Robert Castel e a construção do indivíduo na sociedade moderna

Robert Castel apresenta sua concepção sobre a construção do indivíduo moderno em uma entrevista com a pesquisadora Claudine Haroche. Juntos, exploram a concepção de Castel segundo o qual a construção do indivíduo se desenvolveu a partir da consolidação dos suportes sociais que permitem a existência do indivíduo. Embora seja um diálogo, o que está em pauta é a concepção de Castel.

Castel sustenta uma abordagem centrada na análise das condições sociais objetivas que dotariam os homens da propriedade de si. A análise genealógica dessas condições o aproxima muito da concepção durkheimiana, relativa à anterioridade do social sobre o individual. A preocupação do autor é a de analisar as condições de emergência do sujeito e não especificamente trabalhar a emergência do sujeito. “Um indivíduo não existe em substância, e para existir como indivíduo é necessário ter suportes, e, portanto devemos nos interrogar sobre o que há “detrás” do indivíduo que o permita existir como tal (p. 12).



As condições sociais, ou suportes, a que se refere Castel, são sempre direcionadas à perspectiva da segurança e proteção social. O autor entende que apenas um indivíduo assegurado e protegido socialmente poderia desenvolver a propriedade de si, pois este indivíduo não dependeria de outros indivíduos. Ou seja, ser indivíduo positivamente seria estar no seio de uma sociedade, e ser parte dela, e por ser parte dela ser protegido dos acasos da existência. O que se subentende, portanto, é que o indivíduo liberta-se da dependência de outros indivíduos, não sendo mais propriedade de outros indivíduos, mas passa a legitimar a coerção da sociedade, tornando-se proprietários de si através de seu trabalho. Na sociedade, o indivíduo teria seus direitos garantidos, tornar-se-ia um cidadão. Desta maneira, o indivíduo passaria a depender da capacidade do Estado de garantir certas condições, e por isso o social o tornaria um indivíduo. A idéia é a de que os suportes necessários para existir e ser reconhecido como indivíduo só poderiam ser obtidos pela sociedade.

Castel entende que na modernidade ocorreu uma separação entre propriedade e trabalho, o que implicaria em pensar numa sociedade de proprietários e não-proprietários. Neste sentido, identifica que, primeiro, a propriedade privada, como enunciou Locke, poderia tornar o indivíduo proprietário de si. Os trabalhadores, devido à condição de não-proprietários, não gozavam de uma igualdade de fato, pois estavam despossuídos de si mesmos, pertencendo ao patrão. Não proprietários, nada poderiam ser. Com a falta da propriedade privada para um grande número de pessoas, a propriedade social representou uma inovação que permitiu a reabilitação dos não-proprietários para ascender à propriedade de si, pois a propriedade social outorgaria a seguridade e o reconhecimento pelo trabalho na condição de assalariado. Assim, as relações de trabalho foram estruturadas na sociedade salarial em torno de instituições do Estado. O trabalho assalariado permitiria o acesso aos suportes sociais a ele associados favorecendo a integração e a coesão social. Na sociedade salarial se poderia encontrar uma distribuição da propriedade social em que seria permitido aos indivíduos o exercício de fato de seus direitos de cidadão. Neste sentido, a propriedade social seria análoga da propriedade privada, ou seja, uma propriedade que gera segurança e proteção social.

Entende o autor que “Existir positivamente como indivíduo é ter a capacidade de desenvolver estratégias pessoais, dispor de uma certa liberdade de escolha na condição de sua própria vida porque não se encontra na dependência de outro” (p. 26). A propriedade de si dependeria da possibilidade de apropriar-se do próprio corpo, apropriar-se do tempo e pensar o próprio destino.

Comentários com base no texto:
CASTEL, Robert; HAROCHE, Claudine. Propriedad privada, propriedad social, propriedad de si: conversaciones sobre la construcción del indivíduo. 1ª Ed. Rosario: Homo sapiens, 2003.